Contribuição à Reforma Universitária*

O Anteprojeto de Reforma Universitária recentemente apresentado pelo Governo, embora mereça severas críticas sob vários pontos de vista quanto ao seu conteúdo e propostas, teve o grande mérito de ser colocado sob discussão, tendo sido, todos nós, cidadãos brasileiros interessados no aperfeiçoamento do Ensino Superior, conclamados a nos manifestarmos tanto oficial como extra-oficialmente. Seria, portanto, séria omissão se não participássemos do debate como estudiosos do assunto e professores universitários convictos do importante papel dessas instituições no desenvolvimento de qualquer país.

O Ensino Superior tem sofrido grandes alterações nas últimas décadas devido ao crescimento da demanda e, conseqüentemente, da oferta de vagas, gerando problemas de gestão e financiamento pela perda da capacidade de investimentos dos Estados, pelo aumento dos custos, muitos deles decorrentes das crescentes exigências legais, pela introdução de modernas técnicas de informação e comunicação e, também, pela pressão de órgãos de classe na preservação da qualidade de seus profissionais e de seu mercado de trabalho.

O Anteprojeto de Reforma Universitária apresentado pelo Governo reflete no título o próprio entendimento, um pouco estreito, do sistema. Não se trata de uma reforma do sistema de Ensino Superior brasileiro, mas da universidade, principalmente a federal, que é o foco principal do anteprojeto.

Ao lado da preocupação pelas universidades federais, o Governo se viu pressionado, pelas forças políticas que o apóiam, pelas IES já estabelecidas e pelas entidades profissionais, por diferentes razões, a tentar limitar o crescimento do setor privado e a vê-lo como opositor do setor público, assumindo uma posição discriminatória e maniqueísta, como se bastasse ser público para ser bom e privado para ser mercantilista. É um falso problema, porque nenhuma das duas hipóteses é, necessariamente, verdadeira.

O documento apresenta, a quem o examina, a visão de que o papel do Ensino Superior é o de construir a igualdade entre classes econômicas e etnias, trazendo para o Brasil o incentivo às separações étnicas, copiando, assim, dos Estados Unidos – que membros do atual Governo tanto criticam – o que sua sociedade tem de pior. A origem dessa posição parece ser o lema, freqüentemente enunciado, de que a universidade forma cidadãos, como se só universitários fossem os legítimos cidadãos de um país!

Pouco há sobre o apoio aos indivíduos talentosos e a instituições bem-sucedidas. Aqui parece que a ideologia presidiu a formulação da proposta, que não procura identificar e estimular os indivíduos, preferindo lidar com as classes, novamente a partir de uma visão ideológica da Educação.

Acreditamos que a qualidade dos profissionais de nível superior seria beneficiada se os bons estudantes fossem estimulados a prosseguir em seus estudos, em todos os níveis, independentemente da condição financeira, racial ou política, a partir de ações afirmativas do Estado de apoio ao mérito.

Para concluir a crítica à ideologia que perpassa o documento, não há nenhuma experiência concreta que indique que sindicatos sejam os melhores orientadores das ações de uma universidade, nem que amplos colegiados deliberativos tenham melhorado o desempenho de qualquer instituição de Ensino Superior no mundo, embora possa, em períodos curtos, contribuir para afastar interesses políticos externos e menores da gestão das universidades.

Em médio prazo, no entanto, a eleição direta ajuda a fazer prevalecer o corporativismo e as forças centrífugas que tendem a transformar as universidades em feudos profissionais autônomos e desconectados das ações centrais da instituição.

Por se orientar pela tentativa de recuperar as universidades federais, que sem dúvida passam por sérias dificuldades, e controlar o setor privado, o anteprojeto deixa de fora importantes questões ou as trata de forma discutível. Sugerimos, sem entrar em grandes detalhes para não tornar o texto excessivamente longo (documentações e exemplos podem ser fornecidos aos interessados), algumas reflexões que mereceriam ser contempladas em um projeto profundo de reforma do sistema de Ensino Superior, a partir das experiências de sistemas e das universidades que mais têm crescido, nos países desenvolvidos, em tamanho e qualidade.

O reconhecimento e incentivo à uma política empreendedora das IES, a partir de cinco estratégias: a centralização do controle da instituição e de suas decisões estratégicas (reduzindo a pulverização centrífuga gerada pelos inúmeros colegiados com caráter decisório), a diversificação de suas receitas (para não depender de uma só fonte de financiamento, aumentando sua liberdade acadêmica), o envolvimento de todas as áreas nos projetos desenvolvidos (sem a separação tão defendida das áreas básicas e aplicadas), a manutenção de estreito contato com seu entorno (setor produtivo, comunidade e os governos de suas regiões) e a valorização da capacidade individual das lideranças (pela definição dos líderes adequados aos projetos e às funções, mais do que escolha pela titulação acadêmica). Seria interessante que o atual anteprojeto fosse analisado sob essa ótica, em que as instituições querem se distinguir pelos resultados, contra a acomodação e a isonomia mediocrizante.

A escolha dos dirigentes universitários é, cada vez menos, realizada por eleição direta e universal, uma vez que a universidade não é um fim em si mesma, mas uma instituição que tem uma missão ligada ao desenvolvimento nacional. Além disso, a visão corporativista de que só um professor da instituição pode ser seu Reitor ou Diretor Geral faz com que se perca, no Brasil, a experiência de excelentes quadros dirigentes, que esgotaram suas atuações em suas instituições e que poderiam ser muito bem aproveitados em outras IES, principalmente as menos maduras. O presidente das grandes multinacionais não é, necessariamente, pertencente ao quadro de funcionários da empresa. Por que não adotar, para as universidades federais que o governo mantém, a experiência americana do search committee, transparente, democrática e ampla, que já foi experimentada com sucesso no Brasil? Se não esse exemplo, por que então não deixar, pelo menos, como arbítrio da autonomia institucional?

No que se refere às oportunidades, porque não parar de investir nas instituições, em relação ao ensino, financiando e valorizando o bom estudante, com potencial, preservando e incentivando os cérebros do futuro, com a introdução de um voucher para os alunos com melhores resultados no ENEM e com carência financeira, para freqüentarem qualquer curso com financiamento integral do governo, estimulando as IES a se qualificarem para atrair esses estudantes?

O Brasil possui uma inversão de demanda própria das nações tecnologicamente pouco competitivas: a predominância das áreas de Direito e Administração sobre as áreas de Engenharia e Ciências. Essas áreas são de formação mais cara e, pela mensalidade elevada, afugentam os jovens e investimentos do setor privado. Seria fundamental criar, no programa de financiamento ao estudante, uma prioridade para as áreas tecnológicas, como existe para as licenciaturas. Seria importante, também, direcionar o financiamento de tal forma que as regiões com menos alunos no Ensino Superior em relação às respectivas populações tivessem prioridade.

Por que não separar o diploma universitário da autorização para o exercício profissional?

vitaria-se, com isso, as discussões prematuras associadas aos currículos dos cursos profissionais, em que as associações de classe tendem a ser ultraconservadoras, conspirando contra modernizações curriculares, e a pressão desses órgãos contra a abertura de novas vagas. Para os estudantes formados, aí sim, entraria o critério dessas associações, como parte da autorização periódica do exercício profissional. A IES que não conseguisse fazer com que seus alunos atuassem profissionalmente perderia naturalmente candidatos e o sistema se auto-regularia.

A extinção das fundações de apoio às universidades federais não é uma solução. Se é verdade que muita coisa precisa ser corrigida em várias delas, essas instituições são importantes, por seu caráter de organizações privadas, para facilitar o enlace das universidades com a sociedade e o setor produtivo. O Council for Advancement and Support of Education dos EUA assim se manifestou sobre o assunto: “Uma fundação privada relacionada com uma universidade desempenha certas funções mais eficientemente que os órgãos públicos... Em geral, os fundos públicos obedecem ao princípio de menos risco e menor taxa de retorno... As fundações, não estando submetidas às normas governamentais para compra e venda, podem realizar essas transações de forma mais expedita”. No Canadá, as fundações são também importantes, e, na Europa havia 205 fundações de apoio em 1998. É preciso regulamentar, mas não eliminar esse importante mecanismo de enlace social, cujo fim é defendido principalmente por quem concorda com o retorno da universidade à torre de marfim.

Finalmente, a autonomia universitária, ponto relevante no projeto em relação às universidade federais, deveria introduzir formas de aferir resultados e o cumprimento de metas dessas instituições. A autonomia das universidades estaduais paulistas foi um avanço e melhorou suas gestões, mas embora mais restritiva que a atual proposta em relação a gastos com pessoal, não existe a exigência de cumprimento de metas e de bons resultados, o que sempre criticamos. Autonomia sem responsabilidade é soberania com dinheiro público, o que não é correto. Parte da responsabilidade dessas instituições poderia ser a indução e participação em projetos regionais de desenvolvimento em conjunto com IES estaduais, municipais e privadas, a capacitação de professores de outras IES por meio de um projeto agressivo coordenado pela CAPES, com a criação, por exemplo, de mestrados profissionais para a formação pós-graduada de profissionais que desejassem abraçar a carreira universitária, recuperando o espírito do antigo mestrado como formação de professores de terceiro grau e não de iniciação à pesquisa, em que ele se transformou. A indicação de dirigentes para as universidades federais e os aportes orçamentários deveriam depender do cumprimento desses objetivos.

Esses são alguns exemplos que, embora longe de esgotar as possibilidades de inovações e reconsiderações, poderiam trazer, a nosso ver, grande contribuição à qualidade e expansão do Ensino Superior brasileiro, que sempre defendemos, à qual não nos furtamos e sempre estivemos dispostos a oferecer.

*Cópia do texto enviado em 15/02/2005 ao Ministério da Educação pelos Diretores da Lobo & Associados, Professores Maria Beatriz e Roberto Lobo